Arganilenses foram leiteiros em Lisboa
Arganilenses em Lisboa
Pela sua localização geográfica e a importância histórica que teve no contacto com diferentes povos e culturas, nomeadamente na época dos Descobrimentos, Lisboa constituiu, desde sempre, uma cidade cosmopolita, talvez mesmo aquela que algum dia logrou colocar em contacto maior número de gentes das mais diversas origens, e promover a sua convivência pacífica.
Muitos dos seus hábitos e formas de comunicação foram progressivamente assimilados pela nossa própria cultura e dela fazem atualmente parte como se jamais tivessem deixado de lhe pertencer.
O mesmo sucede com as gentes que das mais diversas regiões do país afluíram um dia à grande cidade na esperança de alcançarem melhores condições de vida.
As migrações internas: das aldeias para as cidades
O crescimento da indústria nos finais do século dezanove atraiu grandes levas de pessoas que desse modo fugiam à miséria e ao empobrecimento dos campos, transformando-se rudes agricultores em operários disciplinados que passaram a engrossar o numeroso exército de mão-de-obra que as fábricas então exigiam.
Durante algum tempo, muitos deles ainda conservaram alguns hábitos que consigo traziam dos trabalhos da lavoura, como o costume de cantar enquanto produziam.
Porém, depressa o ruído infernal das máquinas os amordaçou, submetendo-os a uma escravatura que não apenas lhes sugava o suor como embrutecia a alma.
Mas, em conformidade com as suas origens, muitos dos novos lisboetas passaram a exercer outros ofícios e atividades que, pese embora a dureza da vida a que se sujeitavam, não se sentiam esmagados sob a força impiedosa das máquinas.
Era o que se verificava com as gentes da região de Arganil e concelhos vizinhos da zona serrana da Beira Litoral.
Os arganilenses sentiram desde sempre uma particular propensão para as atividades ligadas à produção do leite.
Eram eles quem percorria a cidade com as suas vasilhas leiteiras e, ao assomar à entrada dos prédios, atirava o pregão:
– Leiteiro !!!
Com efeito, o leite foi durante muito tempo distribuído avulso, de porta em porta, medido à frente das donas-de-casa ou das criadas de servir.
Por vezes, também vendiam manteiga cuja produção lhe está associada.
Mas, o leite passou a ser engarrafado e a figura do leiteiro foi desaparecendo.
Antes, porém, a distribuição de leite ao domicílio era feita na verdadeira aceção do termo.
A distribuição de leite ao domicílio
O leiteiro percorria a cidade levando consigo o animal e, a pedido, procedia à recolha do leite no mesmo instante em que servia o cliente, sem necessidade de pasteurizar ou introduzir quaisquer ingredientes que os modernos processos de produção exigem.
Como é evidente, apesar do seu carácter pitoresco, o passeio de animais pela cidade nunca foi muito recomendável para a conservação da higiene pública.
A esse tempo existiam também os lactários que eram escolas e jardins-de-infância especialmente destinados às crianças mais desfavorecidas.
E, tal como o nome indica, dispunham de estábulos onde eram criadas vacas leiteiras que asseguravam o fornecimento de tão precioso alimento considerado indispensável ao crescimento saudável das crianças.
Com o decorrer do tempo, muitas profissões foram desaparecendo. Mas os arganilenses ficaram.
Deixaram de percorrer as ruas da cidade com os seus animais e as vasilhas leiteiras, fazendo distribuição ao domicílio.
Fizeram aquilo que agora é usual designar-se por “reconversão profissional”: tornaram-se nos conceituados pasteleiros e confeiteiros de Lisboa!
Legenda da foto de destaque: Venda de leite ao domicílio, no início do século XX, em Lisboa.
Carlos Gomes, Jornalista, Licenciado em História | Imagens: Fotos do Arquivo Fotográfico da CML