Efemérides

Bocage morreu no dia 21.12.1805, em Lisboa

Manuel Maria Barbosa du Bocage

(Setúbal, 15/9/1765-Lisboa, 21/12/1805)

«Paixão requer paixão; fervor extremo
Com extremo e fervor se recompensa.»

Estes versos do poeta sadino ilustram aquilo que foi a sua vida e a sua obra, aliás profundamente ligadas.

Filho de um advogado e de uma senhora de origem francesa, Bocage cresce num ambiente em que a poesia está presente, mormente através de uma sua tia-avó, Mariana du Bocage, poetisa que recebeu os favores da intelectualidade francesa, e inclusive de seu pai, que não desdenhava invocar as musas nas horas vagas.

Cedo o seu espírito irrequieto se faz sentir, levando-o a abandonar aos 14 anos a escola em busca de aventura, alistando-se no regimento de Infantaria 7. Vem depois para Lisboa, matriculando-se na Academia da Marinha e assentando praça como guarda-marinha.

Bocage, mestre da improvisação

Paralelamente, a sua veia poética começa a garantir-lhe um enorme sucesso entre as tertúlias boémias que enxameiam os cafés da capital, tirando partido de extraordinários dotes de improvisação.

A sua linguagem enriquece-se de termos de calão, que não hesita em utilizar, emprestando à sua poesia um travo de veracidade popular que, aliado à ferocidade do seu espírito satírico, porventura terão levado Herculano a considerar que Bocage trouxera a poesia dos salões para a praça pública.

O individualismo do seu carácter malquista-o rapidamente com a Nova Arcádia, de que chegara a ser membro, criando-lhe inimizades que ele avoluma ridicularizando nos seus versos os adversários.

O temperamento de polemista é uma das facetas mais marcantes do jovem guarda-marinha, sempre pronto a empunhar a arma da critica jocosa para ferir os seus inimigos.

Porém, a certeza com que o faz não tem paralelo quando transposta para o seu intimo, apesar das fanfarronices algo pedantes em que se envolve, e que mais não são do que tábuas de salvação a que a sua mente agitada e perpetuamente em busca de equilíbrio recorre.

Daí a inconstância, a insegurança, a volubilidade que se patenteiam na sua vida.

 

Para ler: Almeida Garrett morreu em Lisboa a 9.12.1854

Como Camões, viajou pelo Oriente

Procurando imitar o seu modelo, Camões, parte para a Ásia, passando por Goa e Damão, primeiro, e depois por Macau e por Cantão.

Nos itinerários do vate d’Os Lusíadas não encontra a felicidade que a sua alma torturada persegue, pelo que regressa a Lisboa desencantado.

Aqui, deixa-se cativar pelas promessas do liberalismo jacobino, então em moda, apesar dos esbirros de Pina Manique, para o qual o seu amor à liberdade naturalmente o predispõe.

A teia do intendente da polícia acaba por o deter e o conduzir à prisão.

Amigos influentes conseguem transformar o delito contra o Estado em erro religioso, o que provoca a sua transferência para os cárceres da Inquisição, então bem distante, após o consulado pombalino, da violência repressiva de outras eras.

Posteriormente, transita para o Convento das Necessidades, ficando entregue à custódia da Congregação do Oratório.

É um Bocage diferente que abandona os Néris, doente e mais conformado (conformista?), dedicando-se ao sustento de uma irmã através de traduções.

A cova o seu estro irá parar, minado por um aneurisma, aquele inimigo de hipócritas e frades, cuja vida foi uma constante confrontação entre conceitos tantas vezes opostos, entre contradições dilacerantes.

A tudo isto ultrapassou pelo génio, pela visão romântica que não esquecia o erotismo, pela capacidade plástica de modelar a língua pátria, pela inventiva que, quando se apresentava a necessidade, se convertia em inveciva aguda, pela agilidade de raciocínio onde as conceções filosóficas racionalistas, embora denotando uma leitura superficial, se entrechocam com a religiosidade profunda do seu ser, enfim, pela precursora obsessão da morte que o impele para o tétrico e para o macabro, em angustiantes páginas de desespero perante a impossibilidade da eternidade, essa mesma que ele denunciara como pavorosa ilusão. [J. C. P.] 1

Retrato de Bocage… pelo próprio

Magro, de olhos azuis, carão moreno,bem servido de pés, meão na altura,triste da facha, o mesmo de figura,nariz alto no meio e não pequeno.Incapaz de assistir num só terreno,mais propenso ao furor do que à ternura,bebendo em níveas mãos por taça escurade zelos infernais letal veneno.Devoto incensador de mil deidades(digo de moças mil) num só momentoe somente no altar amando os frades,Eis Bocage, em quem luz algum talento.Saíram dele mesmo estas verdadesnum dia em que se achou mais pachorrento.

Bocage

Já Bocage não sou!… À cova escura

Já Bocage não sou!… À cova escuraMeu estro vai parar desfeito em vento…Eu aos céus ultrajei! O meu tormentoLeve me torne sempre a terra dura.Conheço agora já quão vã figuraEm prosa e verso fez meu louco intento.Musa!… Tivera algum merecimento,Se um raio da razão seguisse, pura!Eu me arrependo; a língua quase friaBrade em alto pregão à mocidade,Que atrás do som fantástico corria:Outro Aretino fui… A santidadeManchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,Rasga meus versos, crê na eternidade!

Bocage

 

Para ler: Beethoven foi baptizado a 17 de dezembro de 1770

 

Conta-se que…

«Conta-se que Bocage, ao chegar a casa um certo dia, ouviu um barulho estranho vindo do quintal.

Chegando lá, constatou que um ladrão tentava levar os seus patos de criação.

Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o a tentar pular o muro com os seus amados patos, disse-lhe:

Oh, bucéfalo anácrono! Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo acto vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa.

Se fazes isso por necessidade, transijo… mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com a minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada!

E o ladrão, confuso, diz:

Doutor, afinal levo ou deixo os patos?»

A história do peido de Bocage

Estando Bocage num reputado salão de baile da capital do império, frequentado pela mais fina flor da sociedade lisboeta daquele tempo, uma dama ter-se-á descosido, coitada, e soltado um sonoro peido.

Ruborizada, a senhora terá pensado em recorrer ao poeta, bem próximo dela, e ter-lhe-á murmurado ao ouvido uma pungente súplica para que fosse ele, no meio da confusão gerada, a assumir o infausto acontecimento.

Bocage, sempre delicado para com o elemento feminino, prontamente acedeu e virando-se para os presentes, disse: “Minhas senhoras e meus senhores, o peido que esta senhora deu, não foi ela, não, fui eu“!…

1 Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, vol.1