Fúnebre: antologia de homenagem aos defuntos
Vem sempre a propósito num Almanaque falar da morte mas mais no mês dos mortos, que é este de Novembro.
A pequena antologia fúnebre que se segue apresenta, assim o esperamos aquela dose de ciência, humor e macabro que deve dar cor às páginas de um bom almanaque.
Capilarmente fúnebre
Sabes a história do Cabeludo e da Morte, que é a versão crioula do Encontro em Samarra?
Um Cabeludo ia pela rua e viu a Morte sem que ela o visse e ouviu-lhe dizer: Hoje tenho que levar um Cabeludo.
Entrou a correr numa barbearia e disse ao barbeiro: À escovinha.
Saiu para a rua muito satisfeito, sem um único cabelo.
A Morte, que andava à procura do Cabeludo por todos os lados, já morta de cansaço, disse ao ver o homem da cabeça rapada: Bom, como não encontro nenhum cabeludo, vou levar este careca.
Moralidade: Todos os homens são mortais, mas alguns homens são mais mortais que outros.
(Cabrera Infante, Três Tristes Tigres)
Caninamente fúnebre
Jack, amigo fiel,A casa ficou vaziaDe ti hoje só existeA saudade noite e dia.Todos os cantos da casaDe ti me fazem lembrarJack, o amigo fiel,Já não sinto o teu ladrar.Tudo fiz pra te salvarMas o destino cruelSubstituiu pela saudadeO meu Jack tão fiel!
(apud Cemitério dos cães, in Jardim Zoológico de Lisboa, 1950)
Centurionicamente fúnebre
Quando em 1938, o coronel SS Conrad Buch, que fazia parte da secção de pesquisas ocultas do governo hitleriano, chegou ao palácio dos Habsburg em Viena, recuperou ali um objecto que considerava ser a lança com que o Centurião Longuinhos abrira o peito de Cristo.
Não se sabe quais são os documentos que comprovam a Buch a autenticidade do objecto. É que se conhecem ao todo umas quatro lanças de Cristo, todas pretensamente autênticas, está claro.
Mas parece estar provado que Hitler tinha muita crença naquela lança e lhe atribuía boa parte dos seus sucessos.
Três semanas antes da destruição do bunker de Hitler, o burgomestre de Nuremberga conseguiu fugir do dito bunker com a lança e enterrou-a em Nuremberga.
Dali a três semanas, à hora mais ou menos a que Hitler morria, a lança foi descoberta pelas autoridades americanas que a recuperaram.
Morreu recentemente o professor Stein de Viena que estudara o problema em pormenor; e a viúva encontrou nos seus papéis um relatório pormenorizado das cerimónias a que Hitler se entregava diante da tal lança de Cristo.
(Planete n.° 2, Dez e Jan. 1962, p. 125)
Osseamente fúnebre
Em um manuscrito do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra deparei com a seguinte notícia.
É do padre Dom José de Cristo Bretiandos, autor da Crónica da Santa Cruz:
«É tradição dos velhos mui antiga, e em algumas escrituras se toca que a casa da morte (que neste mosteiro é coisa mui celebrada e devota, por onde como em escola de mortos aprendemos o que há-de ser dos vivos quando isto vemos).
Consta de ossos dos mártires que neste reino morreram por a fé de Cristo, assim nas guerras como em martírios.
Assim o escreve um antigo bibliotecário desta casa, mui visto no cartório dela, que se chamava Dom Vicente, em as suas memórias de mão.
Esta casa é toda de ossos de homens cristãos, tem as paredes e o forro feitos dos mesmos ossos e caveiras: umas que olham para as outras, outras metidas para dentro; têm estas paredes muito largo, porque são altas, e sustentam o forro que está feito por admirável artifício com muitas rosas e debuxos feitos dos mesmos ossos e caveiras, tudo inteiro.
Tem mais um altar que está fundado em nove ou dez colunas de ossos que deviam ser das coxas: junto deste altar, ao redor dele, tem uma letra que diz: fuimus sicut vos, eritis sicut nos (fomos como vós e sereis como nós), em os cantos do altar, da parte da epístola e evangelho tem a morte que parece viva, porque estão dois corpos de ossos, assim organizados e juntos como eu em mim os trago, e os artícolos dos dedos, e as palmas das mãos, tudo organizado como se fossem os corpos vivos; os mais ossos do corpo assim os têm compactos e juntos, como andavam em o tempo florido da mocidade, cobertos da pele e ornados com a carne que cuidavam ser imortal.»
(Almanaque de Lembranças, 1868, p. 179).
Linguisticamente fúnebre
Muitos são os adágios e frases proloquiais da nossa língua cuja origem é hoje inteiramente desconhecida; porém outros há que ainda lha podemos rastrear, investigando os usos e costumes dos nossos avoengos.
Um destes adágios é o que frequentemente repetimos, quando queremos inculcar algum sucesso que tarde ou nunca se realizará.
E assim dizemos: Quem espera por sapatos de defunto toda a vida anda descalço.
Eis aqui a origem: antigamente as irmandades e confrarias tinham um irmão a quem chamavam campeiro, o qual, quando morria algum dos confrades, corria a povoação tangendo a campa ou campainha, para sinal de que a irmandade devia naquela noite acompanhar o falecido à sepultura.
Por este trabalho recebia o campeiro os sapatos do defunto.
E não só era este o uso mas obrigação, porque nalguns compromissos se lia: «todo o confrade que se finar dê os sapatos ao campeiro».
Já se vê que estes homens estavam sempre esperando os sapatos do defunto; e, como dantes a gente portuguesa era mais vividoira, os campeiros, se não andavam descalços, haviam de trazer muitas vezes os dedos de fora.
(Silva Túlio, Almanaque de Lembranças, 1868, p. 363).
Legalmente fúnebre
Como se achava regulado o luto em Portugal?
Pela pragmática de 24 de Maio de 1749, cap. 7., que determina que se traga luto:
– por tempo de seis meses por marido e mulher, pelos pais, avós e bisavós, por filhos netos e bisnetos;
– quatro meses, pelos sogros ou sogras, genros ou noras, irmãos e cunhados; dois meses por tios, sobrinhos e primos co-irmãos;
– e que se não tome luto por parentes mais remotos senão por quinze dias.
O luto pelas pessoas reais de Portugal, e da Corte pelos Soberanos e príncipes estrangeiros, acha-se regulado pelo decreto de 26 de Outubro de 1862, transcrito no Diário de Lisboa de 27 do mesmo mês.
Têm alguns deveres a cumprir aqueles que andam de luto?
Certamente; e mais ou menos rigorosos, segundo o seu grau de parentesco com o defunto.
Um viúvo ou uma viúva, um filho, um irmão, por exemplo, devem abster-se, nos primeiros tempos da sua aflição, de assistir a espectáculos e outros divertimentos públicos, limitando-se a visitar as pessoas que mostraram tomar parte na sua dor.
Entregar-se a tais distracções quando se está de luto rigoroso seria muito para censurar.
Qual foi o primeiro luto preto que se tomou em Portugal?
Foi por D. Filipa, tia de D. Manuel. Até ao tempo daquele monarca, era o luto de burel branco.
(Manual Encyclopédico para uso das escolas d’Instrução Primária, por Aquiles Monteverde, ed. 1865)
Fonte: Almanaque fantástico cómico-científico (texto editados e adaptados)