História da vida de Giacomo Casanova
Giacomo Casanova
O nome de Casanova tornou-se tão lendário que hoje, na linguagem comum, é sinónimo de D. Juan, o perfeito conquistador.
Na verdade, ao escrever, septuagenário, os seus extensos doze volumes de Memórias, o pseudo-cavaleiro de Seingalt contribuía conscientemente para a aura de mistério que envolve o mito do Burlador de Sevilha ou do amante irresistível.
A narrativa, minuciosa e repleta de lances do melhor romanesco, flui saborosa, excitante, no estilo direto do autor, transportando os leitores para os últimos anos despreocupados do ancien régime.
Naturalmente, as Memórias de Giacomo Casanova, essa figura de «libertino» tão característica da época, não deixaram de ser alimentadas pela imaginação.
O autor «colabora», sem dúvida, com a própria biografia, limando algumas arestas: compondo a sua figura, corrigindo detalhes que não lhe agradavam.
Isso não diminui, porém, o imenso interesse histórico, sociológico e humano da obra.
Resumo de uma vida dissipada, mas de inegável brilho e inteligência.
Sem dúvida, Giacomo Casanova jogou «intensamente» o seu destino de sedutor, vivendo até às últimas consequências de um modo que não pode deixar de interessar os existencialistas contemporâneos, a sede de existir que o levou de seminarista a industrial e de Veneza a Paris, através de um labirinto de experiências diversas e contraditórias transpostas nos tomos das Memórias.
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Anos de aprendizagem
Na Sereníssima República de Veneza, no ano da graça ele 1725, nascia, filho dos atores cómicos Zanetta e Gaetano Casanova, um menino de sexo masculino que as más-línguas da Vermelha Rainha do Adriático diziam provir realmente dos amores da atriz com um nobre, Michele Grimani.
O ator Gaetano morreria pouco tempo depois, e Zanetta, requestada pelo palco e pelos admiradores, entregou a criança aos cuidados de terceiros, bom princípio para uma educação desregrada.
Aos nove anos é mandado para a vizinha cidade de Pádua, que, cultivando a memória de Tito Lívio, ali nascido, mantinha com a sua multissecular Universidade a tradição escolástica.
Pensava Zanetta fazer o filho padre, e realmente, ao completar dezasseis anos, recebia o jovem veneziano as quatro ordens menores.
Assim que chegara à cidade de Santo António, hospedado em casa de um preceptor, enamorara-se de Bettina, irmã daquele, inaugurando precocemente a interminável série de aventuras e escândalos que foi a sua própria vida.
Mas este primeiro amor (Bettina era três anos mais velha do que ele) não o desarmou para a carreira eclesiástica, e na Igreja de San Samuelle, no Canal Grande de Veneza, ensaia as primeiras prédicas, parece que sem grande sucesso; maior sucesso tinha o jovem padre com as raparigas que encontrava e que, ao primeiro olhar, o deixavam perdido de amor. Lúcia, filha do intendente de Pasean, Ângela e as duas irmãs Nanetta e Marta, sempre carinhosas com ele, foram as paixões da sua ardente adolescência.
Embora soubesse de cor a obra de Horácio e boa parte do Orlando Furioso, não deixou de sofrer as sanções das autoridades religiosas, que o confinaram, primeiro, no seminário de Murano e, depois, como castigo, no Forte de Santo André, um dos muitos cárceres que haviam de acolhê-lo…
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Ao serviço junto do bispo de Martirano
Terminado o período de punição, mandam-no para a Calábria, prestar serviço junto do bispo de Martirano.
Após muitas aventuras, chega ao lugarejo perdido. Horrorizado com aquele «desterro», foge para Roma, não sem antes ter dito ao bispo: «Dê-me a bênção e a licença de partir, ou antes, venha daí comigo. Juro-lhe que faremos os dois fortuna!»
Em Roma, ao mesmo tempo que se entretém com a mulher de um advogado, a apetitosa Lucrécia, torna-se zeloso secretário do cardeal Acquaviva, posto que ocupa até que um pequeno escândalo o obriga a sair da cidade papal.
Dirigindo-se a Veneza, decide abandonar a batina, que realmente não lhe ia bem, e enfeitar-se com uma farda de oficial, primeiro degrau da série de avatares que havia de encarnar pela vida fora: mágico, desocupado, médico, economista, diplomata, industrial, espião, literato.
Dava-se o nome imaginário de cavaleiro de Seingalt e sabia fazer-se insuspeitavelmente simpático, mesmo para aqueles a quem enganava, fosse como amante ou como charlatão, prometendo tê-los em comunicação com o «além» ou revelando-lhes o método infalível de encontrar a pedra filosofal.
Teve para Casanova a maior importância o ocasional encontro com o senador veneziano Matteo Giovanni Bragadin (em dialecto veneziano Zuan Bragadin).
A este, que havia de ser o seu grande protetor, extorquiu o aventureiro quantias elevadíssimas, mas nem por isso Bragadin deixou de lhe dispensar sempre amiga e generosa proteção.
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Uma boa ação
A grande afeição do senador por Casanova nasceu de um acaso feliz: Casanova, que por esse tempo, para sobreviver, tocava violino num teatro, encontrou noite alta, ao regressar do trabalho, um velho muito decaído, que socorreu caritativamente acompanhando-o a casa de gôndola.
Era o senador Bragadin, que talvez tivesse passado desta para a melhor se Casanova, feito médico improvisado, não o tratasse e curasse, ganhando assim a sua eterna gratidão.
Sob a proteção do senador, o nosso homem refloresce e depressa conquista um lugar na alta sociedade veneziana.
Mas o gosto pela intriga, a arrogância e o feitio perdulário multiplicam os seus inimigos.
Notado já pelos inquisidores do Estado, segue Casanova os conselhos do bom Bragadin e muda de ambiente, partindo, em 1750, para Paris.
Em Paris, Casanova teve rapidamente acesso à melhor sociedade, mercê da proteção da bela Silvia Balleti, atriz italiana, cujo filho fora companheiro de viagem do cavaleiro de Seingalt.
O jovem veneziano era mestre na arte de fazer amigos e de insinuar-se em qualquer meio.
Foi-lhe fácil ganhar a amizade do velho Crebillon, o concorrente de Voltaire; conheceu a Pompadour, Fontenelle e uma infinidade de comediantes italianos, e gozou a vida.
Depois de ter passado algum tempo em Dresde e em Viena, regressou a Veneza, onde retomou a vida dissoluta, sempre a meter-se em aventuras e intrigas.
O dinheiro do velho Bragadin continuava a correr e as mulheres não se faziam muito rogadas. (Para a lista: Catarina, que o pai acabou por fechar num convento, e Madalena).
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Condenado pelo Tribunal dos Inquisidores
Convive com o embaixador de França, o «libertino» abade de Bernis, e com os jovens mais afortunados de Veneza, mas a Inquisição não dormia, e, em 25 de Julho de 1755, foi condenado pelo Tribunal dos Inquisidores a cinco anos de prisão «por muitas reflexíveis culpas, principalmente o desprezo público pela Santa Religião».
Encarcerado, quinze meses depois Casanova consegue fugir, arriscando várias vezes a vida numa evasão que hoje chamaríamos «rocambolesca…»
Após a dramática fuga, Casanova, que toma outra vez o caminho do exílio, vai reencontrar em Paris os velhos amigos: Manon Balletti, a filha de Sílvia, crescera e tornara-se gentilíssima, e o senhor de Bernis, que regressara do posto de Veneza, era agora um homem de alta influência.
Foi justamente a influência de Bernis que ajudou o cavaleiro de Seingalt a guindar-se de novo a uma posição confortável.
Um projecto de lotaria do Estado, apresentado a pedido do ex-embaixador em Veneza, mereceu em poucos dias a aprovação oficial, e Casanova, seu autor, passa a receber uma lisonjeira percentagem sobre os lucros.
Torna-se rico e estimado, a ponto de lhe confiarem uma delicada missão de espionagem militar em Dunquerque.
Mas o espírito de aventura é nele mais forte que o desejo de estabilidade e segurança, e em breve Casanova começa a explorar habilmente a marquesa d’Urfé, velha com a mania das ciências ocultas e senhora de grande fortuna…
Com a promessa de a transformar em homem e pô-la em contacto com os «espíritos elementares», o aventureiro consegue extorquir-lhe, durante anos, avultadas quantias.
Os ventos sopram favoravelmente e Casanova leva uma vida de estadão, rodeado da admiração de todos.
Mas a roda da fortuna não pára no seu giro: o herdeiro da velha marquesa denuncia a manobra do veneziano.
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Missão na Holanda
Não é fácil, contudo, desmascará-lo e, sempre sob a proteção de Bernis, Casanova desempenha, com assinalado êxito, uma importantíssima missão financeira na Holanda.
Em Amsterdão não perde tempo: explora, com as ciências ocultas, o riquíssimo Hope. (Para a lista: Ester, a filha da vítima…).
Volta a Paris, instala-se numa luxuosa vivenda, retoma o «negócio» com a marquesa d’Urfé, funda uma fábrica para estampagem de tecidos de seda, que é mais um harém do que um estabelecimento industrial, fica noivo de Manon Balletti e atura-lhe os fortíssimos ciúmes…
A roda da fortuna vai precipitá-lo mais uma vez: os tecidos não se vendem (está-se em guerra), as operárias-odaliscas são um luxo, o caixa esvazia-lhe os cofres.
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O começo do declínio
Falência, prisão. Em 1759, após dois dias de internamento em Fort-l’Evêque, a fiel marquesa d’Urfé consegue libertá-lo.
Diz adeus à noiva e à França. Fixa-se alguns meses na Holanda, mas tem de mudar de ares…
Salta para Colónia. (Para a lista: a mulher do burgomestre da cidade…). A polícia interessa-se por ele muito de perto.
Agora, em Coblença, uma atriz consegue convencê-lo a segui-la até Estugarda, de onde uma estúpida aventura de jogo o obriga a fugir como um vulgar ladrão.
É a vez de Zurique: apresenta-se a todos como cavaleiro de Seinpalt, mas não tem um tostão no bolso.
Deprimido, chega a formar o projeto de entrar num convento, mas, entretanto apaixona-se (?) pela baronesa Roll (mais uma para o rol) e muda, é claro, de ideias.
A Sr.ª Dubois, governanta que contratara, depressa substitui a baronesa e segue-o até Berna.
A vida está para o «nosso» homem cada vez mais intrincada. A polícia, que ainda não era a eficiente Interpol, não lhe dá sossego.
Da Suíça passa a França, de França a Itália, de Itália novamente a França.
Pisa terrenos sempre mais perigosos, reencontra velhos amores, conhece filhos que «semeara», mas não se comove muito. Quer é mudar constantemente de cidade e fazer novas conquistas.
Vítima das mulheres, como a si mesmo se considerava, cai nas unhas de Catarina Renaud, astuta bailarina, e é espoliado até ao último ceitil. Lá vem a marquesa d’Urfé socorrê-lo e ser explorada mais uma vez.
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Partida para Londres
Em 1763 parte o triste cavaleiro de Seingalt para Londres. Encontra Mariana Charpillon, e nesse dia, como depois se aperceberá, «começa a morrer».
É levado pela jovem cortesã até ao limiar da loucura, mendiga o seu amor e por fim vai parar à prisão, com a perspetiva de uma condenação à morte.
Livre do incidente, é no entanto forçado a fugir de Londres por ter pago uma dívida com um cheque falso.
Retoma as suas peregrinações. Berlim, onde conhece Frederico II, foi a escala seguinte.
Sucedem-se Riga, S. Petersburgo, Moscovo, e nesta última cidade encontra-se várias vezes com a grande Catarina.
Intimo das cabeças coroadas, vê-se presenteado, em Varsóvia, em 1765, com duzentos ducados, dádiva do rei Estanislau Poniatowki.
Mas não só dádivas terá em Varsóvia: também contratempos e dos maiores. Insultado pelo marechal Saverio Branicki, desafiou-o para duelo e feriu-o no ventre com gravidade.
É expulso da Polónia, volta a Dresde, demora-se em Viena, é expulso de Viena, passa a Augusta, depois a Spa. Aqui propõe ao príncipe da Curlândia um meio infalível de encontrar a pedra filosofal.
É visto, pouco depois, em Paris.
O caso da Marquesa d’Urfé já era do domínio público e uma ordem de expulsão assinada pelo punho do próprio rei força-o a seguir para Espanha.
Denunciado pela Inquisição, é metido numa prisão em Madrid. Meses depois acontece-lhe o mesmo em Barcelona e acaba por ser expulso do país.
A nostalgia da bela Veneza mordia-lhe o coração.
Bragadin, que sempre o tratara como a um filho, morrera, e o cavaleiro, apesar dos seus quarenta e poucos anos, sentia-se no ocaso.
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Conhece Cagliostro
Quando, na viagem de regresso, pára em Aix, conhece Cagliostro, então no início da sua carreira de charlatão internacional, e mais se convence do seu imparável declínio.
Para obter o perdão das autoridades de Veneza, Casanova escrevera, nos cárceres de Barcelona, uma ópera em defesa das instituições da República: «Confortações de Amelot de la Houssaye».
Hão-de passar anos, contudo, antes que a ópera tenha o efeito desejado. Gira o aventureiro por Itália, já entretido com pequenos casos, e acaba por se domiciliar em Trieste, onde presta, como espião, informações ao governo…
Em 1774, finalmente, é autorizado a regressar a Veneza e, para viver, oferece os seus serviços ao Tribunal dos Inquisidores por quinze ducados mensais. Mas como espião não era zeloso e não denunciava ninguém, o que o leva a ser cortesmente despedido pouco depois.
Tentou, então, com maior persistência, a carreira de escritor e chegou a editar uma revista teatral que ele mesmo escrevia de uma ponta à outra.
O seu anjo consolador era uma humilde costureira, com quem vivia numa modestíssima casa.
O triste cavaleiro teria acabado serenamente em Veneza os seus agitados dias se um libelo seu (Nem Amores, nem Mulheres), não o tivesse feito incorrer, mais uma vez, no ódio dos compatriotas, forçando-o novamente a exilar-se – e agora para sempre!
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Leva vida de judeu errante pela Europa fora
Pela Europa levou então vida de judeu errante, mas sempre cheio de projetos: construir um canal de Bayonne a Narbonne, emigrar para Madagáscar, ajudar os irmãos Montgolfier nas suas experiências, etc.
Fixado, por um tempo, em Viena, consegue entrar, como secretário, ao serviço do embaixador de Veneza, mas quando este morre Casanova cai na miséria mais negra.
Salva-o o jovem conde de Waldstein, sobrinho do príncipe de Ligne (um dos seus melhores amigos), que o admite como bibliotecário no castelo de Dux.
O «fauna de meias de seda» começa, então, a remontar o curso da sua atribulada existência, chegando a dedicar treze horas por dia à redação das Memórias.
Quando, anos depois, estas foram publicadas – morrera, entretanto, Casanova, em 4 de Junho de 1798 -, muita gente pensou que semelhante homem nunca existira, que só a imaginação dera vida ao herói das Memórias…
Fonte: “Almanaque” – Outubro 1959 | Imagem