Justifica-se o significado do lindo nome de rio Douro

Onde se justifica o significado do lindo nome de rio Douro

Nasce o rio Douro perto da serra Cantábrica de Orbion, na Castela Velha; corre pelas terras leonesas e sempre para ocidente, cortando o relevado nordeste peninsular, até encontrar as ondas atlânticas.

Atravessa montes e serras, num esforço veemente para achar caminho, razão por que as águas se precipitam, por vezes agitadas e violentas, em fundos vales ou entre alcantiladas escarpas.

Seu leito é pedregoso e desigual, obrigando a corrente a ferver e a espumejar em cachoeiras e saltos sem conta.

As águas sombrias e indomáveis mal deixam reflectir em si a linha cimeira dos cerros adustos que lhes fazem sentinela.

Nas margens abruptas – altas ondulações terrosas – apenas alveja de longe a longe, fora dos povoados, a pincelada branca de algum casal.

Quebra a serenidade grandiosa daquele quási bíblico silêncio, a bênção cristã de um toque de matinas ou trindades, anunciadas, em humilde alegria ou em calmo recolhimento, pelas ermidinhas perdidas nas alturas dos montes.

Por vezes, revoadas de pombas riscam o céu com o sedoso rufiar das suas asas. É uma nota delicada da natureza a contrastar com a áspera majestade da paisagem.

O Douro é um rio de velhas tradições.

Já os nomes clássicos de historiadores e geógrafos gregos e romanos se lhe referem em prosa e verso.

Nas letras nacionais, sem número foram aqueles que lhe têm dedicado sua atenção, incluindo Camões, o grande génio da Raça, que por isso lhe chamou o «Douro celebrado».

Em tempos idos, foi natural fronteira luso-galaica e, de certa maneira, limite temporário da civilização romana no seu desenvolvimento para o norte.

Bem próximo do seu curso acidentado e até à vista das suas águas, floresceram cidades e povoações de alto nome, há cerca de vinte séculos! Basta citar «Numância»; a célebre «Presídio»; a discutida «Calle»!

Seu nome anda ligado a algumas das mais velhas lendas da nacionalidade, em constante evocação de alevantados sucessos dos tempos medievos.

É folhear, ao acaso, os pergaminhos dos velhos tombos da grei!

Porém, no nosso tempo, a razão que lhe dá alta soberbia é de outra ordem; mas o contributo de valor que desde há três séculos trás ao orgulho nacional não é menor.

Tem a glória de cortar uma região excepcionalmente dotada pela Providência de um tão grande número de condições admiráveis, que lhe foi possível dar ao mundo um dos seus melhores vinhos, um daqueles vinhos cuja fama devia igualar a de Falerno dos tempos áureos de Roma.

Essa preciosidade, verdadeiro néctar, quando nos primeiros séculos da nacionalidade já era possivelmente embarcado com outros vinhos para os portos do norte da Europa, chamava-se «vinho de Portugal»; mais tarde (no século XVII), era o «vinho do Douro» e mais tarde ainda, com o Marquês de Pombal, o «vinho da Companhia» – ou o «vinho fino», perante as suas qualidades fidalgas; e hoje, finalmente, corre todos os continentes, em meio de invejosa concorrência, com o rótulo bem regional de «Vinho do Porto».

Produto-maravilha, nascido de um verdadeiro milagre da terra e do clima; «castas» de videiras há séculos aclimatadas sobre «geios» ou «calços», que escalonam as encostas à semelhança de um estádio «monstro»; terrenos pré-câmbricos e xistosos; no verão, um calor de fornalha; o frio, o vento, o gelo, a tempestade, no inverno!

Como rio de montanha, o Douro é de navegação difícil. Não o vence qualquer embarcação, nem o governa qualquer «mestre».

Um mesmo e único tipo de barco se encontra, através dos séculos, em seu laborioso tráfego e, assim mesmo, à custa de longa e penosa experiência.

Já os antigos diziam, com razão e conhecimento de causa, que era «rio de mau navegar».

A sua corrente alterosa é permanentemente violenta, e só abranda em frente a Melres, já próximo do Porto.

O acesso do rio é difícil pelos inesperados perigos que surgem, em constante variação de local e dependente do regime das águas, sendo inúmeros – pois são mais de duas centenas, entre os de mor e menor monta – os «pontos», «rápidos», «cachões» e «galeira», que se multiplicam pelo seu curso, o que fez dizer ao poeta: «mil pontos, mil quebradas».

Têm nomes com ressaibos de outras idades e que se tornam bárbaros para os ouvidos de quem não conhece a sua mais que sinuosa corrente.

Inalterável na forma durante séculos e séculos, o deslizar do barco «rabelo» é solene, majestoso no equilíbrio do seu conjunto, com grandeza no aparato rude da sua arquitectura.

O casco, de madeira ordinária, é feito ao jeito das águas sombrias do rio, que mais «ressolham» quando a espadela canta.

A vela, de linho humilde, entrega, confiadamente, os seus destinos aos desígnios de Deus.

O colorido sóbrio e pitoresco do barco, a bizarria dos trajos dos marinheiros, a grandeza da paisagem, tudo se congrega para que no nosso espírito alguma coisa fique marcado, indelevelmente.

Quando os «rabelos» surgem nalguma curva do rio, descendo a corrente, quer isolados quer acompanhados – as esquadras, como lhes chamam – imperturbáveis na sua marcha quási processional, temos a sensação estranha de estar contemplando uma frota da antiguidade clássica ou dos alvores da idade média, forçando uma passagem, tentando um desembarque, e vem-nos então à mente a história quási lendária do velho burgo portucalense, destacando da névoa do tempo e da memória humana a gloriosa armada dos gascões ou as naves do Rei Ramiro.

Armando de Mattos (Do livro «O Barco Rabelo»)

Não é impunemente que uma cidade nasce e se desenvolve junto de um curso de água que vem, de tão longe, animado de força criadora. Um barco rabelo, um cacho de uvas, um sorriso… Três imagens que sintetizam a fotogénicas paisagem do Douro, onde a faina do vinho, desde a colheita ao seu transporte pelo rio, é inexcedível de beleza plástica, de pitoresco e de alegria. Fotos de António Parro e António Mendes

 

Os bois, no Douro Litoral, transportam, além dos carros, jugos ornamentados lindíssimos. Foto de António Mendes
O empolgante panorama do rio Douro, em Pinhão. Foto de Mário Novais

in “Panorama“, nº05-06, 1941 (texto editado e adaptado)