Miguel Torga – escritor transmontano

Miguel Torga

Miguel Torga

é o pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nascido em S. Martinho de Anta – Sabrosa (Trás-os-Montes e Alto Douro) em 12 de Agosto de 1907.

Com origem numa família humilde de Sabrosa, era filho de Francisco Correia da Rocha e Maria da Conceição de Barros.

Depois de breve passagem pelo Seminário de Lamego, emigrou para o Brasil com 13 anos apenas, tendo aí trabalhado duramente até aos 18.

Regressado a Portugal, em três anos completa o curso dos liceus, licenciando-se depois pela Faculdade de Medicina de Coimbra em 1933.

E em Coimbra, onde exerceu clínica durante mais de quatro décadas, decorreu a maior parte dos seus dias, num voluntário, arisco e fecundo afastamento dos meios literários da capital.

Mas não pode, a seu respeito, falar-se de sedentarismo: impenitente calcorreador de todos os caminhos de Portugal, atravessando constantemente «serras e vales por estradas intransitáveis» (o que já o levou a dizer: «Pareço um doido a correr esta pátria».

E ainda: «Ah, sim, lá conhecer Portugal conheço-o eu!»), Miguel Torga tem ainda realizado frequentes viagens pela Europa, a par de mais episódicas surtidas ao Brasil e à África.

De qualquer modo, na sua profunda intimidade com a realidade telúrica e social portuguesa («O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo»), muito predominantemente avulta a sua estreita e pânica comunhão com os mais ínfimos pormenores da província natal.

E dela tem sido, simultaneamente, o aedo inspirado, o implacável e subtil analista, o rigoroso e mitificante intérprete.

Escreveu e editou cerca de meia centena obras

Sem transigir, por princípio, com os circuitos comerciais da edição, Miguel Torga publicou, geralmente em edições de autor, cerca de meia centena de livros nos géneros mais variados.

De entre as suas obras de poesia salientam-se, depois de coletâneas ainda incompletamente reveladoras

– Ansiedade, 1928;

– Rampa, 1930;

– Tributo, 1931,

os volumes

– O Outro Livro de Job (1936),

– Lamentação (1943),

– Libertação (1944),

– Odes (1946),

– Nihil Sibi (1948),

– Cântico do Homem (1950),

– Orfeu Rebelde (1958),

– Câmara Ardente (1962), e

– Poemas Ibéricos (1965).

Como contista, o melhor da sua produção encontra-se nos livros

– Bichos (1940),

– Contos da Montanha (1941),

– Novos Contos da Montanha (1944), e

– Pedras Lavradas (1951),

enquanto a novela

– O Senhor Ventura (1943)

e o romance

– Vindima (1945),

bem como a transposição autobiográfica levada a cabo nos quatro volumes de

– A Criação do Mundo (1937, 1938, 1939 e 1974),

patenteiam, por sua vez, diferentes e mais amplas coordenadas, quer do seu poder de criação ficcionista, quer das inúmeras capacidades da sua prosa a um tempo sortílega e enxuta, despegada do efémero e agarrada ao concreto.

Idênticas qualidades, no domínio do estilo, encontram-se ainda nas suas peças de teatro

Mar (1941)

Terra Firme (1941),

Sinfonia (1947) e

O Paraíso (1949),

do mesmo modo que tampouco se mostram ausentes das suas recolhas de textos mais circunstanciais como

Traço de União (1955) ou

Fogo Preso (1976)

e, muito em particular, de um volume como

Portugal (1950),

que constitui, para todas as regiões do País, um precioso e lúcido vade-mécum em que à flagrância das notações paisagísticas se aliam a pertinência da crítica social e o desassombro da visão histórico-política.

O pessoalíssimo “Diário” de Miguel Torga

E, finalmente, registem-se, com especial relevo, os doze volumes (publicados de 1941 a 1977) do seu pessoalíssimo Diário, onde se encontram, em prosa e verso, admiráveis textos de variada espécie:

– reflexões culturais do mais largo alcance;

– lúcidos e pungentes instantâneos da vida quotidiana;

– corajosas tomadas de posição no campo ideológico;

– fulgurantes «análises espectrais» da alma e da paisagem portuguesas;

– apontamentos de deambulações além-fronteiras;

enfim, belíssimos poemas que constituem, ao mesmo tempo, certeiros testemunhos acerca da realidade e magníficos «objectos verbais» que, à força da simplicidade e de contenção, transfiguram essa realidade a cada instante.

O papel social da sua obra

Entre muitas mais coisas que ficam por dizer, importa ainda acrescentar que toda a obra de Miguel Torga, desempenhando embora um papel social de primeira ordem, nunca tem tido necessidade, para muito claramente se afirmar, de recorrer aos estratagemas ou aos álibis de um comprometimento especificamente político.

Assim, não foi por pertencer a qualquer partido, mas somente em virtude do seu humanismo essencial e consequente, que Miguel Torga conheceu a prisão sob o regime de Salazar, que esteve durante anos impedido de sair do Pais, que viu alguns dos seus livros proibidos pela censura ou apreendidos pela polícia política.

Miguel Torga manteve-se coerentemente empenhado na edificação de um Portugal mais digno, sem cair nas armadilhas da demagogia nem nas tentações de qualquer totalitarismo, antes respeitando – como sempre tem feito- o inato sentido da liberdade e as seculares raízes da sabedoria do nosso povo.

Foi casado com Andrée Crabbé, de 1940 a 1995, ano da sua morte, em Coimbra (17 de janeiro).

O Alto Douro, visto pelos olhos de Miguel Torga

(Do “Diário”)

S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954.

A UM NEGRILHO

Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

(De Diário, vol VII)

Fonte: “Portugal – a Terra e o Homem – Antologia de textos de escritores do século XX”, por David Mourão-Ferreira (II volume – 1ª série) – texto editado e adaptado | Imagem