O Milagre de Fátima, a 13 de Outubro de 1917
O Milagre de Fátima
(Carta a alguém que pede um testemunho insuspeito)
Quebrando um silêncio de mais de vinte anos e com a invocação dos longínquos e saudosos tempos em que convivemos numa fraternal camaradagem, iluminada então pela fé comum e fortalecida por idênticos propósitos, escreves-me para que te diga, sincera minuciosamente, o que vi e ouvi na charneca de Fátima, quando a fama de celestes aparições congregou naquele desolado ermo dezenas de milhares de pessoas mais sedentas, segundo creio, de sobrenatural do que impelidas por mera curiosidade ou receosas de um logro…
Estão os católicos em desacordo sobre a importância e a significação do que presenciaram.
Uns convenceram-se de que se tinham cumprido prometimentos do Alto; outros acham-se ainda longe de acreditar na incontroversa realidade de um milagre.
Foste um crente na tua juventude e deixaste de sê-lo.
Pessoas de família arrastaram-te a Fátima, no vagalhão colossal daquele povo que ali se juntou a 13 de Outubro.
O teu racionalismo sofreu um formidável embate e queres estabelecer uma opinião segura socorrendo-te de depoimentos insuspeitos como o meu, pois que estive lá apenas no desempenho de uma missão bem difícil, tal a de relatar imparcialmente para um grande diário, O Século, os factos que diante de mim se desenrolassem e tudo quanto de curioso e de elucidativo a eles se prendesse.
Não ficará por satisfazer o teu desejo, mas decerto que os nossos olhos e os nossos ouvidos não viram nem ouviram coisas diversas, e que raros foram os que ficaram insensíveis à grandeza de semelhante espetáculo, único entre nós e de todo o ponto digno de meditação e de estudo.
Vários aspetos do povo ajoelhado e orando no momento de descobrir o sol e de se dar o fenómeno que tanto impressionou a multidão
Em Fátima
O que ouvi e me levou a Fátima?
Que a Virgem Maria, depois da festa da Ascensão, aparecera a três crianças que apascentavam gado, duas mocinhas e um zagalete, recomendando-lhes que orassem e prometendo-lhes aparecer ali, sobre uma azinheira, no dia 13 de cada mês, até que em outubro lhes daria qualquer sinal do poder de Deus e faria revelações.
Espalhou-se a nova por muitas léguas em redondeza; voou, de terra em terra, até aos confins de Portugal, e a romagem dos crentes foi aumentando de mês para mês, a ponto de se juntaram na charneca de Fátima, em 13 de outubro, umas cinquenta mil pessoas, consoante os cálculos de indivíduos desapaixonados.
Nas precedentes reuniões de fiéis, não faltou quem tivesse suposto ver singularidades astronómicas e atmosféricas, que se tomaram como indício da imediata intervenção divina.
Houve quem falasse de súbitos abaixamentos de temperatura, da cintilação de estrelas em pleno meio-dia e de nuvens lindas e jamais vistas em torno do sol.
Houve quem repetisse e propalasse comovidamente que a Senhora recomendava penitência, que pretendia a ereção de uma capela naquele local, que em 13 de outubro manifestaria, por intermédio de uma prova sensível a todos, a infinita bondade e a omnipotência de Deus…
Foi assim que, no dia célebre e tão ansiado, afluíram de perto e de longe a Fátima, arrostando com todos os embaraços e todas as durezas das viagens, milhares e milhares de pessoas.
Umas que palmilharam léguas ao sol e à chuva, outras que se transportaram em variadíssimos veículos, desde os quase pré-históricos até os mais recentes e maravilhosos modelos de automóveis, e ainda muitíssimas que suportaram os incómodos das terceiras classes dos comboios, dentro dos quais, para percorrer hoje relativamente pequenas distâncias, se perdem longas horas e até dias e noites.
O que vi!
Vi ranchos de homens e de mulheres, pacientemente, como elevados num sonho, dirigirem-se, de véspera, para o sítio famoso, cantando hinos sacros e caminhando descalços ao ritmo deles e à recitação cadenciada do terço do Rosário, sem que os importunasse, os demovesse, os desesperasse, a mudança quase repentina do tempo, quando as bátegas de água transformaram as estradas poeirentas em fundos lamaçais e às doçuras do outono sucederam, por um dia, os aspérrimos rigores do inverno…
Eu vi a multidão, ora comprimida à volta da pequenina árvore do milagre e desbastando-a dos seus ramos para os guardar como relíquias, ora espraiada pela vasta charneca que a estrada de Leiria atravessa e domina e que a mais pitoresca e heterogénea concorrência de carros e pessoas atravancou naquele dia memorável, aguardar na melhor ordem as manifestações sobrenaturais, sem temer que a invernia as prejudicasse, diminuindo-lhes o esplendor e a imponência…
Vi que o desalento não invadiu as almas, que a confiança se conservou viva e ardente, a despeito das inesperadas contrariedades, que a compostura da multidão em que superabundavam os campónios foi perfeita e que as crianças, no seu entender privilegiadas, tiveram a acolhê-las as demonstrações do mais intenso carinho por parte daquele povo que ajoelhou, se descobriu e rezou a seu mandado ao aproximar-se a hora mística e suspirada do contacto entre o céu e a terra…
E ainda o milagre de Fátima!
E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que esse rumorosa mas pacífica multidão animada pela mesma obsessiva ideia e movida pelo mesmo poderoso anseio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima?
A chuva, à hora prenunciada, deixar de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro-rei – disco de prata fosca – em plena zénite aparecer e começar dançando num bailado violento e convulso, que grande número de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes cores revestiu sucessivamente a superfície solar…
Milagre, como gritava o povo; fenómeno natural, como dizem sábios?
Não curo agora sabê-lo, mas apenas de te firmar o que vi… O resto é com a Ciência e com a Igreja.
Avelino Almeida | (Clichés Benoliel)
Fonte: “Ilustração Portugueza”, II Série – nº610 – 29 de Outubro de 1917 (texto editado e adaptado à atual grafia)