Conquista de Silves aos Mouros – 3.09.1189
Conquista de Silves aos Mouros
«Esta luta de todos os dias, estes vãos esforços da valente guarnição muçulmana para salvar a capital de Chenchir [Silves] eram os clarões derradeiros da lâmpada que se extinguia. Renderem-se ou perecerem de sede com todos os habitantes que sobreviviam, eis a alternativa que lhes restava.
Tratou-se da rendição.
No dia 1 de Setembro os sarracenos começaram a chamar dos muros e torres alguns oficiais do rei de Portugal para lhes proporem as condições de entrega.
Eram elas de quem cria possível encobrir a extremidade em que a povoação estava. Pretendiam que os deixassem sair com todos os bens imóveis, entregando aos conquistadores aquelas ruínas da almedina e da alcáçova.
Acedeu Sancho à proposta, mas os trânsfugas da cidade que de instante a instantes cresciam de número pintavam por tal arte as agonias da sede, o terror que incutiam as minas, a desesperança, enfim, dos habitantes, que os cruzados, apesar de todas as diligências do rei recusaram concordar com aquelas estipulações.
Como de cristãos que diziam combater pela glória e engrandecimento da própria crença esta resistência dos estrangeiros, que podia talvez prolongar os horrores da guerra, era uma detestável cobiça.
Considerados, porém, como mercenários que vendiam o sangue e a vida para satisfazerem a ânsia de rapina, justo era que recebessem a sua paga.
Foi a esta luz que Sancho encarou o negócio.
Generoso para com os vencidos, intentou remir o saque de Silves oferecendo aos cruzados dez mil morabitinos ou áureos, soma que por fim fez subir à de vinte mil.
Cruzados recusam pagamento por parte de D. Sancho I
Recusaram eles pertinazmente com o pretexto de que, sendo necessário ir buscar o dinheiro a Coimbra, ou pelo menos a Évora, retardariam a viagem.
Constrangido pelas promessas feitas em Lisboa aos seus aliados, o rei cedeu, concedendo-se apenas aos habitantes de Silves o não saírem inteiramente nus.
A 3 de Setembro abriram-se, enfim, as portas da cidade rendida, e os sitiadores puderam ver por seus olhos qual era a horrível situação dos cercados.
O chefe sarraceno, cujo verdadeiro nome não é fácil descobrir no de Albaíno que lhe dá o historiador cristão nosso guia nesta narrativa (mas que provavelmente era o caide Abdullah, ou Abu Abdullah, filho ou neto de um anterior wali de Silves), saiu a cavalo da cidade à frente de grande parte dos muçulmanos, os quais, cobertos de pobres trajos que indicavam tristeza e cativeiro, iam peregrinos buscar asilo aos muros de Sevilha.
Sugestão: Cronologia essencial sobre o Islão
O respeito ao valor desgraçado não pôde conter a feroz bruteza dos cruzados, que ainda naquele transe espancavam e despiam os vencidos.
Irritado já pela ambição dos estrangeiros, a cólera do rei de Portugal subiu ao extremo à vista de tal espectáculo, e os portugueses estiveram a ponto de virem às mãos com os seus aliados.
À noite estes ocuparam sós a cidade, e fecharam-se as portas para que não saíssem durante as trevas os restantes moradores.
A cidade foi saqueada pelos Cruzados
As cenas que aí se passariam fáceis são de adivinhar. Os muçulmanos ficaram encerrados nas casas, e muitos, desprezadas as mais solenes promessas, foram postos a tormentos para confessarem onde havia que saquear.
A luz da manhã mostrou aos olhos daquela turba de salteadores quais tinham sido as vítimas da sua barbaridade.
Era gente quase moribunda, cujas faces tingia palidez mortal e que mal podiam mover-se, caminhando muitos de rastos.
Nas ruas jazia grande número de pessoas, umas seminuas, outras já mortas, e o cheiro dos cadáveres de pessoas e de animais era intolerável.
Dos prisioneiros cristãos, que subiam a quatrocentos e cinquenta ao principiar o cerco, só duzentos sobreviviam, e esse a ponto de expirar.
Enfim, da numerosa população de Silves restavam apenas quinze a dezasseis mil almas.
O doloroso quadro que tinham ante os olhos abrandou, enfim, um pouco esses duros corações.
Conduzido o resto dos moradores para fora das portas, os cruzados abstiveram-se das violências até aí perpetradas.
O receio da cólera de Sancho I, já irado contra eles, contribuiu, porventura para essa moderação; mas nem por isso a discórdia entre o príncipe português e os estrangeiros deixou de aumentar, posto que por diverso motivo.
Cruzados e Portugueses empenhados de forma diferente
Durante o cerco, segundo parece, as tropas portuguesas, cuja constância no assédio a esperança da pilhagem não alimentava, tinham mais de uma vez querido que o campo se levantasse; nem isto era de admirar, visto que também mais de uma vez os cruzados, que contavam com o saque de Silves, haviam desanimado.
Para conter, pois, a soldadesca tinha-se-lhe prometido certa porção do esbulho, cedendo nesta parte as tropas estrangeiras dos anteriores ajustes.
Vimos que o próprio rei, constrangido pela falta de vitualhas, resolvera por fim abrir mão da empresa, e assim, quando se tratou da divisão do despojo, escolheu para os seus os mantimentos, de que havia grande quantidade na povoação tomada.
Como os cruzados tinham sido os que se aquartelaram dentro dos muros e viam que os víveres não lhes cabiam em sorte, começaram a roubá-los e a vendê-los às escondidas pelo arraial dos portugueses.
Queixou-se altamente o rei deste proceder; porque, desbaratadas assim as provisões, ver-se-ia na dura necessidade de abandonar a povoação que tanto custara a conquistar.
Longe, porém, de se coibir com as queixas do rei, aquele tropel desenfreado passou a saquear a cidade, sem esperar ordem dos seus chefes.

Portugueses ocupam Silves
Era uma verdadeira anarquia, à qual Sancho I, cuja indignação subira de ponto, pôs termo, mandando ocupar Silves por tropas portuguesas e expulsar dali os cruzados que, descontentes, a 7 de Setembro, voltaram de novo à sua armada e, descendo o rio, vieram lançar ferro perto da barra.
Aí, enquanto consertavam alguns navios e dividiam o produto de três dias de saque, ainda tentaram obter mais alguma coisa do seu aliado, invocando ora a generosidade deste, ora a sua religião; nada, todavia, alcançaram.
Chegando o negócio quase a rompimento, é assaz provável que Sancho passasse as metas da moderação e que, se de um lado tinha havido violência e rapina, também não fosse inteiramente digno de louvor o procedimento da outra parte.
Passados, enfim, doze dias os cruzados saíram do porto de Silves, acusando Sancho e os portugueses de não terem nem combatido nem trabalhado durante o cerco, e de os haverem defraudado do que lhes pertencia.
Estas acusações, a primeira das quais se repetiu na Europa, estão desmentidas pela narrativa de um daqueles mesmos que contribuíram para as espalhar, convencendo-se de falsa ou pelo menos de exageradíssima a queixa contra a avareza e deslealdade de Sancho, à vista dos ricos despojos que os estrangeiros levavam; despojos que, fazendo esfriar o entusiasmo de muitos pela liberdade dos santos lugares, os induziram a ir gozar na pátria o fruto da expedição contra os sarracenos da Espanha.» (Alexandre Herculano, História de Portugal).
Fonte: “Almanaque” – Setembro de 1960 | Imagem

