A Feira das Mercês: um anacronismo que perdura!

A Feira das Mercês em Sintra

A Feira das Mercês, no concelho de Sintra, constitui, desde há muito, uma das mais genuínas feiras da região saloia.

Desde o século XVIII que, na segunda metade do mês de Outubro, os agricultores ali acorrem para vender os seus produtos e divertir-se. Por esta altura já se bebe a água-pé.

E, a juntar às novidades da época, aparece o famoso leitão de Negrais, o típico queijo saloio e, como não podia deixar de ser, a suculenta carne de porco às Mercês, guisada na banha dentro de um pratinho de barro.

Casal de Saloios vai à Feira das Mercês
O casal de saloios, numa aguarela de Leal da Câmara.

Esta foi uma das mais concorridas feiras que se realizam nos arredores de Lisboa.

As tendas, montadas no recinto junto à quinta que desde há várias gerações pertence ao marquês de Pombal, dão vida à parte profana de uma festa que, como não podia deixar de acontecer, também possui uma vertente religiosa em torno da humilde capelinha de Nossa Senhora das Mercês [ver na página seguinte].

Em tempos recuados, esta foi uma festa saloia a sério, predominantemente rural, com muitas tabernas e zaragatas à mistura. E nem sequer faltava a feira do gado onde também se vendiam bois. Atualmente, nem galinhas já ali se vendem, tal é a mudança dos tempos.

Os forasteiros vinham de longe e principalmente de Lisboa. A viagem de comboio era demorada mas valia a pena.

As decorações estendiam-se pela encosta até ao centro da povoação onde se encontrava um pequeno apeadeiro do ramal de Sintra pois então esta ainda não passava de uma extensão a partir da linha do Oeste.

A partir dos anos 60 do século XX

Só a partir dos anos sessenta, com o crescimento dos bairros dormitórios, esta região tornou-se densamente povoada e o pitoresco ramal virou uma linha de comboio de via quádrupla intensamente utilizada. Sintra passou a ser o segundo concelho mais populoso do país.

Típicas barraquinhas na Feira das Mercês
As típicas barraquinhas de feiras onde se realizavam os sorteios já desapareceram.

Ao longo da linha férrea, os prédios apinham-se à procura de espaço para receberem sempre novos moradores. A própria tapada das Mercês ficou reduzida a um pequeno pinhal cuja sobrevivência não está garantida.

A maioria das gentes que agora habita a região provém dos sítios mais díspares, tanto de Portugal como de outros países, com uma especial incidência nos países africanos de Língua oficial portuguesa.

As novas “saloias” já não usam bioco e saias compridas – são garotas mais desenvoltas e atrevidas na sua forma de estar.

E a feira de tão típica que foi, vai a cada ano cedendo o espaço a novos feirantes que trazem mercadorias novas e bizarras.

O vinho tinto foi trocado pela caipirinha, o artesanato é vendido por índios sul-americanos e as tradicionais ferramentas agrícolas deram origem a outras alfaias, mais modernas e muito procuradas, geralmente vendidas por indianos – os telemóveis.

Em tempos idos, também se vendiam bois na Feira das Mercês, em Sintra.

Ainda persistem vestígios do passado na Feira das Mercês

Apesar de tudo, ainda persistem alguns vestígios do passado, das características que lhe estiveram na origem, embora tendam a desaparecer a curto prazo.

É que, os esforçados componentes do Grupo de Bombos das Mercês bem rufam os seus instrumentos pelas ruas das urbanizações em redor mas, quem assome à janela, é em regra alguém que desconhece o que se trata realmente aquela festa.

E vai à feira mas para comprar o que precisa – e não precisa! – e para se divertir à sua maneira. O costume saloio nada lhe diz nem de tal possui a mínima curiosidade.

Venda de loiça de barro na Feira das Mercês
A venda de loiça de barro sempre foi uma das características da Feira das Mercês que ainda se preserva.

À outrora típica Feira das Mercês, no concelho de Sintra, pouco mais lhe resta do que aguardar pelo último suspiro e ir definhando.

E, lamentavelmente, acabará por desaparecer, a não ser que se transforme num mero “outlet”, à semelhança de muitos que surgiram por este país fora, com “boutiques de alcofa” onde se vende toda a sorte de produtos contrafeitos.

Aquela feira, constitui já um anacronismo e, simultaneamente, algo que já não corresponde ao que a mesma possuía de mais genuíno e que tinha a ver com as tradições das gentes da região saloia.

Carlos Gomes, Jornalista, Licenciado em História

Nota: Este texto foi publicado, há já alguns anos, no Portal do Folclore Português, pelo que, felizmente, algumas das afirmações já não correspondem ao que se verifica, atualmente, na Feira das Mercês, organizada Câmara Municipal de Sintra em parceria a Junta de Freguesia de Algueirão-Mem Martins e da Junta de Freguesia de Rio de Mouro.

Quem sabe se foi, ou não, a publicação deste texto, ao tempo, que fez com que houvesse as melhorias agora verificadas!   

 

Algumas fotos mais atuais da Feira das Mercês, da autoria do Dr. Carlos Gomes

O característico cruzeiro existente no recinto onde se realiza a Feira das Mercês.
Leal da Câmara retratou de forma magistral os costumes saloios. A gravura representa o namoro junto ao muro do Derrete.
A imagem mostra o célebre muro do derrete, assim denominado porque aqui as saloias se derretiam a ver os rapazes passar na estrada, do outro lado do muro.
A capelinha de Nossa Senhora das Mercês situa-se dentro da quinta pertencente ao atual marquês de Pombal.
A carne de porco às Mercês é o prato típico da localidade.

A Feira das Mercês e o “Muro do Derrete”

“(…) Mas a nota mais típica daquela feira é o célebre «Muro do Derrete».

Próximo da capelinha, há um muro baixo, junto do qual se veem, uns sentados, outros de pé, os saloios e as saloias que se namoram, «derretendo-se» à vista de toda a gente…

É deveras interessante ver aqueles idílios amorosos, aquele arrulhar de pombinhos inocentes… saloiamente falando…

Eles e elas envergando os seus fatos domingueiros, mostram-nos os mais curiosos tipos da região saloia.

Alguns dos rapazes, trajando jaqueta e chapéu largo ou barrete, encostam-se a compridos varapaus.

Elas, de vestidos de cores as mais garridas, ostentam os seus grandes cordões de oiro que fazem inveja… aos amigos do alheio… E ali conversam os «conversados»… É vê-los, todos «derretidos» no «Muro do Derrete» sorrindo-se e apertando-se as mãos.

E os saloios olham de soslaio, desconfiados de que lhes cobicem os «derriços»…

E ai daquele que se «astreva» a dizer uma graça a uma cachopa, por que o menos que lhe pode acontecer é «derreterem-lhe» as costelas com um cajado…

O «Muro do Derrete» da Feira das Mercês é a verdadeira ala dos namorados… saloios

Lima Pereira”

“Ilustração” – Abril de 1933

A Feira das Mercês - Sintra, em outubro de 1932
Aspeto da Feira das Mercês – Sintra, em outubro de 1932 (“Ilustração” – Abril de 1933)