Os círios para o Santuário da Atalaia

Os círios

O santuário da Atalaia é pequeno e sem albergarias para romeiros, como poucas casas se vêem nas rossiadas de redor.

Os trinta ou quarenta círios que lá se juntam, nos últimos sábados e domingos de Agosto, arrumados os andores e apetrechos devotos, à lufa-lufa, no templo, armam tendas a esmo pelos campos, acendem fogueiras, vá de fazer comida, de tocar e bailar o fado ao som das guitarras e das violas, de decilitrar e fazer arruaça toda a noite, até que a madorna de alva os amesenda num sono de borrachos, deixando alguns pares solitários às vezes em bem acusadoras posições.

O movimento de gente às festas do domingo, é, no santuário da Atalaia, de três a quatro mil pessoas:

– vão de Alcochete,

– vão da Moita,

– e vão de Alhos Vedros,

– vão de Setúbal,

– também vão de Palmela,

– vão de Azeitão,

– de Sesimbra, etc.

– afora os seis ou sete círios que, como disse, saem dos bairros populares de Lisboa.

Todo o dia largam vapores do Cais do Sodré, levando forasteiros, através do Tejo, para Aldeia Galega.

Ao longo da estrada que abre na ermida, toldos de lona abrigam botequins e vendas de fruta e vinho, ruidosas de gargalhadas e descantes. É uma poeirada sufocante; o Sol caustica, e a cada momento gritos:

Afasta! E homem! É homem!

– são os cocheiros avisando a turbamulta dos pedestres que abra alas por onde fiadas de carros cortam, num furacão de guizos, estalos de chicote, pragas e açuíces

A lavagem da cara dos romeiros

Na madrugada de sábado para domingo, quando os primeiros clarões do dia ascendem, com a sua pancada de asa, no azul seco e metálico de Agosto, há uma curiosa cerimónia a gozar no chafariz que junto fica quase à igreja da Atalaia.

É a lavagem das caras dos romeiros, que se ordenam por grupos, terras, vizinhanças, e vão das suas tendas processionalmente, ao chafariz, como outros tantos círios laicos, alguns com as filarmónicas no coice, e à frente o mordomo ou juiz, que leva no braço a toalha com que, lavagem feita, se enxugam os carões de toda aquela rustilhada.

Chegados ao tanque, vá de tirar os casacos e as blusas, de arregaçar a camisa e mergulhar na água as trombas sujas da poeira e as manápulas viscosas da porcaria dos festins.

Aí começam tumultos facetos: o círio que chegou primeiro não quer ceder lugar aos estranhos que vêm depois; há gritarias, dichotes, chapadas de água para o monte, debandadas de mulheres ganindo porque lhes molharam os casibeques…

Intervenção dos maridos e dos manos, arremedos de batalha, até que algum trombone cheio de água se despeja na cabeça de algum fogoso desordeiro – depois do que, no meio das gargalhadas, uma borracha congraça no mesmo pé de quermesse as sem-razões de gregos e troianos.

As oito horas começam no templo as festarolas. Há círios privilegiados que vão primeiro; outros que se inscrevem por ordem de chegadas; alguns, refilões, que se metem adiante, a ver se a coisa pega…

Fonte: Fialho de Almeida, De À Esquina, in Portugal – A terra e o homem, antologia de textos de escritores dos séculos XIX – XX, por Vitorino Nemésio (texto editado e adaptado) | Imagem