As perseguições aos cristãos nos primeiros séculos

As perseguições aos cristãos – a Igreja que sofre

O mais antigo documento oficial mencionando os cristãos data do ano de 112. Trata-se da carta endereçada a Trajano por parte de Plínio, o jovem, procônsul na Bitínia, província na qual o cristianismo prosperava.

Durante um longo tempo, a opinião pública confunde judeus e cristãos; sobre eles correm as mesmas maledicências: hábitos impuros, sacrifícios humanos…  Em Roma, no entanto, desde o reinado de Nero, parece que já se faz a distinção.

Nero! A História já depôs suficientemente contra esse personagem para que nós venhamos apertar ainda mais os seus grilhões. Mas nós sabemos muito bem o que esse imperador histrião representa na tradição cristã.

Na noite de 18 para 19 de julho de 64, três quartos da cidade de Roma foram devastados por um incêndio que só seria dominado seis dias depois. A opinião pública atribui o sinistro – parece que erradamente – à loucura de Nero.

Acusado, o imperador procura e encontra culpados plausíveis: os cristãos, que o povo conhece mal, tendo-os por misantropos, ateus e homens dados a ritos orgíacos.

E, na noite de 15 de agosto de 64, o circo de Nero, situado no local onde atualmente se ergue a basílica de são Pedro, assiste a uma das cenas mais atrozes de um reinado fértil em ignomínias: cristãos transformados em tochas vivas, iluminando os jogos e as orgias.

Tertuliano afirma que Nero deu um instrumento jurídico à sua ação contra os cristãos, o Institutum Neronianum, cuja interdição essencial era: “Non licet esse Christianos“. Os historiadores dividem-se quanto a esse facto.

De qualquer forma, não foi a razão de estado que levou Nero († 68) a perseguir os cristãos.

Apesar das perseguições…

A situação continuou a mesma no tempo de Domiciano (81-96).

Na última década do século I, a religião cristã fez grandes progressos, ganhando adeptos até mesmo nos círculos vizinhos ao imperador: assim, por exemplo, M. Flavius Clemens e Flavia Domitila, primos irmãos de Domiciano, e M. Acilius Glabrio, um dos cônsules de 91.

Na medida em que o autoritarismo e os tiques físicos de Domiciano alimentavam os sarcasmos da elite romana, o imperador procura atendê-la golpeando os cristãos, que são espoliados ou executados por ateísmo. A perseguição parece ter sido particularmente violenta na Ásia.

Dois anos após a morte de Domiciano, o Império cai nas mãos de Trajano (98-117), o optimus. Este levou as qualidades de homem de Estado ao seu mais alto grau. Ele se vangloria de manter a antiga tolerância romana.

Respondendo a Plínio, o jovem, procônsul na Bitínia, que o consultara sobre a conduta a manter em relação aos cristãos, Trajano fixa uma norma de conduta:

– os cristãos, com efeito, são ateus;

– desde que convictos, deve-se puni-los, mas não se deve procurá-los e deve-se deixar de lado as denúncias anónimas;

– todo o inculpado que se arrepender deve ser libertado.

Esse “rescrito” de Trajano (112) iria fazer jurisprudência, ainda que a atitude do poder em relação aos cristãos, ao longo dos séculos II e III, careça de clareza.

As perseguições dos Antoninos e dos Severos

Os grandes Antoninos, Adriano (117-138), Antonino Pio (138-161) e Marco Aurélio (161-180), nada fariam para agravar a legislação anticristã. Mas aqui e acolá eclodiriam chamas de antagonismo e tombariam mártires, devido às pressões do povo sobre o poder local.

Isso porque é inegável que a cólera do populacho, alimentada por maledicências, inveja, desgosto ou patriotismo exagerado, levou mais de um cristão aos tribunais e ao suplício: a multidão sempre foi covarde em relação às minorias e às pessoas vigiadas pela polícia.

Mais hostis foram os Severos. Setímio Severo (193-211), em 202, assina um rescrito visando ao mesmo tempo os judeus e os cristãos. Fica interdito não apenas fazer-se cristãos mas também “fazer” cristãos; a justiça não deve apenas esperar as denúncias e sim procurar os cristãos. É sobretudo no Egito e na África – onde o cristianismo progride rapidamente – que esse rescrito faz mais vítimas.

O cruel Caracala (211-217), Heliogábalo, um oriental desequilibrado (218-222), e Severo Alexandre, imperador muito religioso (222-235), deixam adormecida a legislação precedente.

Quiseram fazer de Severo Alexandre um admirador de Cristo: isso provavelmente é falso; aliás, o seu reinado foi marcado, esporadicamente, por execuções de cristãos denunciados pela multidão.

Fenómeno idêntico ocorreu ao tempo de Filipe Árabe (244-249), transformado abusivamente em cristão.

No entanto, é certo que em meados do século III mais de um funcionário do Império é discípulo de Jesus: “Nós enchemos os campos, as cidades, o Forum, o Senado, o Palácio“, escrevia, não sem exagero, o orgulhoso Tertuliano.

As perseguições desde Décio a Aureliano

Uma outra vaga de perseguição se desencadeia na época do valoroso Décio (249-251), preocupado em fazer o envelhecido Império retornar às virtudes e ao culto da antiga Roma.

No ano de 250, todos aqueles que, no território do Império, gozam do direito de cidadania romana são obrigados a manifestar expressamente (através de um sacrifício, uma libação ou a participação numa ceia sagrada) sua adesão à religião oficial; certificados (os libelli) atestarão o fato; os contraventores poderão sofrer a pena de morte.

A aplicação desse édito provoca não poucas renegações, mas também encontrava resistências que dão origem a numerosos martírios em Roma, na Ásia, no Egito e na África.

Valeriano (253-260), através de dois editos, agrava essa legislacão, visando sobretudo a cabeça do corpo cristão: bispos, padres, diáconos. A Igreja da África é dizimada.

Sobrevêm oito anos de paz sob o reinado de Galieno (260-268), inimigo das desordens policiais.

Aureliano (268-275) não tem tempo de impor ao Império o seu sincretismo solar.

No tempo de Diocleciano

Quando, depois de dez anos de anarquia, Diocleciano assume as rédeas do Império (284), o mundo conhece um mestre cujas profundas reformas permitiriam a Roma uma última explosão de brilho.

Mas a vontade imperial de unificação administrativa e religiosa, a impossibilidade para os cristãos de associar o culto de Jesus ao rito da adoratio – essencial aos olhos de Diocleciano e de seu associado Maximiano – e o papel sempre mais importante desenvolvido pelo cristianismo na sociedade romana explicam suficientemente a duração (303-313) e a violência da última perseguição, à qual o nome de Diocleciano permaneceu definitivamente ligado.

Houve muitos martírios, ainda que, em muitos lugares, as ordens vindas de cima tenham sido amortecidas pelo enfraquecimento das posições pagãs ou pela coabitação fraternal entre pagãos e cristãos.

Seria ilusório querer enumerar os mártires dos três primeiros séculos, assim como os apóstatas, os lapsi, particularmente numerosos, parece, na Africa do Norte. Aqui, a severa hagiografia deve sobrepujar as mais belas lendas.

Os Atos e as Paixões dos mártires

Os Atos e as Paixões dos mártires – as mais antigas peças hagiográficas – foram por vezes retocados, num sentido edificante, a ponto de se transformarem em verdadeiras canções de gesta cíclicas, nas quais aparecem invariavelmente – tal como nos filmes de faroeste – os elementos da epopeia:

– o imperador malvado ou o procônsul dissoluto,

– o carrasco cuja mão treme,

– pretensas testemunhas oculares,

– interrogatórios prolixos e estereotipados,

– o terrífico arsenal de torturas,

marchas fúnebres…

Assim,

– os Atos de santa Cecília,

– de santa Tecla,

– de são Sebastião,

– a Paixão de são Juliano…

encontram-se entre os mais célebres desses pios romances

Mas nós contamos com suficientes testemunhos de primeira mão, cuja brevidade é garantia de autenticidade, para nos convencer que muitos cristãos mostraram-se corajosos diante da morte e que as Gesta Martyrum têm valor de apologia.

Em 177, por exemplo, uma carta-circular dirigida pelas igrejas de Lião e de Viena às igrejas da Ásia, relativa à morte do bispo Fotino e de seus companheiros – entre os quais a escrava Blandina -, fornece um relato sem ênfase mas individualizado dos sofrimentos dos cristãos.

Os Atos dos mártires de Cili – levados de Cili a Cartago em 180 – são um breve diálogo, provavelmente estenografado, entre o procônsul Saturnino e Speratus, porta-voz de seus humildes companheiros.

O mesmo tom de autenticidade pode ser encontrado nos Atos proconsulares de

– são Cipriano, bispo de Cartago (258),

– de são Frutuoso, bispo de Tarragona, e seus diáconos (259),

– de são Maximiliano, o conscrito de Tebessa (295),

– e de são Marcelo, o centurião, em Tingi (Tanger) (296),

– de são Filéas de Túnis (305), etc.

“Sangue de mártires é semente de cristãos”

Frequentemente se repete que o sangue dos mártires foi uma semente de cristãos.

Incontestavelmente, do ponto de vista etimológico, um mártir é uma testemunha: e o seu testemunho – por vezes voluntário – tem um valor apologético; tem também valor redentor, sendo uma vitória sobre o mundo e sobre Satã.

Considerado como o grau culminante da santidade, o martírio cerca seus eleitos de uma veneração de que é testemunho o fato de que a Eucaristia era – e ainda é – celebrada sobre seus túmulos.

Mas era a um testemunho perpétuo que cada um dos membros da Igreja cristã era chamado.

Fonte: “História da Igreja”, Pierre Pierrard (texto editado e adaptado)| Imagem