O burro – facetas curiosas na vida de um animal

O burro

Preferiu-se o burro não só pelas inumeráveis virtudes deste estimável bicho, mas também para deixar aos portugueses do futuro um repositório acessível onde possam encontrar facetas curiosas da vida de um animal cuja raça estará então muito provavelmente extinta  – restando dele apenas alguns ossos brancos a marcar o lugar dos antigos abates clandestinos.

Esperemos, todavia, que assim não seja, que os burros possam voltar a encontrar a paz da velhice momentaneamente perturbada e que para bem da família portuguesa, se não generalize um provérbio muito nosso: «Dentada de burro cura-se com o pêlo do mesmo burro»:

Cristófero – o que leva o Cristo

Nalguns países de influência helenística, a montada de Cristo recebeu do povo o qualificativo de Cristófero, «Que leva o Cristo», donde derivaram os nomes próprios de Cristóforo e Cristóvão.

O poeta Filémon morreu de riso à custa de um burro a comer figos.

Entre os índios de Madureia (?) uma das primeiras castas, a dos auvaraducos, pretendia descender de um burro.

Os fiéis desta casta tratavam os burros como irmãos, tomavam a sua defesa, levavam a tribunal e faziam condenar a multas pesadas quem os carregasse demasiadamente, lhes batesse ou insultasse sem· razão e por maldade.

Quando chovia faziam cobrir os burros para que se não molhassem – e quem os montasse nessa altura poderia fazer viagem aproveitando a mesma cobertura, desde que fossem pessoas de boa condição.

A ordem do general Friant no Egipto

Durante a expedição de Bonaparte ao Egipto o general Friant, atacado de surpresa pelos mamelucos, levantou-se nos estribos e gritou: «A divisão forma em quadrado, com os sábios e os burros no meio!».

A ordem, apesar de a situação ser grave e o ataque violento, foi recebida com uma gargalhada geral. Mas no que diz respeito aos burros e aos sábios, a crónica acrescenta «que só se perderam dois levando um deles o outro em cima».

A palavra «burro» não era um insulto entre os· gregos. Homero compara Ajax, vítima de maus tratos, a um burro comendo trigo quando atacado à pedrada por guardas; na Bíblia há citações semelhantes.

Beatriz, a mulher do imperador, e um burro

Beatriz, mulher do imperador Frederico Barba Ruiva, sofreu em Milão indignantes ultrajes. Os revoltosos, tendo-a aprisionado, passearam-na pela cidade montada numa burra, virada para o lado da cauda e segurando esta como se fossem as rédeas.

Tal insolência não ficou impune: o imperador tomou a cidade em 1162, arrasou-a e os habitantes só puderam salvar a vida com a condição de tirar com os dentes um figo enfiado no traseiro da burra em que tinham passeado a imperatriz.

Desde então ficou este hábito meridional e mediterrâneo de fazer figas …

Demóstenes e a anedota sobre um burro

Um dia, Demóstenes, procurando chamar a atenção do povo para qualquer grave assunto de que dependia a salvação da República, apercebeu-se de que não o ouviam, apesar dos esforços que fazia para que se estabelecesse o silêncio.

Serviu-se então de um expediente: «Duas palavras apenas», gritou. «Só lhes quero contar uma anedota». O barulho cessou na assembleia e o orador começou assim:

«No Verão passado, um rapaz tinha alugado um burro para ir de Atenas a Mégara. Partiu escarranchado no burro, que o próprio dono levava à rédea. Por volta do meio-dia, o calor era insuportável.

O rapaz e o dono do burro pararam e quiseram aproveitar a escassa sombra que o animal projectava. Mas não havia espaço para os dois. Começaram a discutir quem o ocuparia. O homem afirmava que tinha alugado o burro e não a sombra; o rapaz sustentava que alugara o burro com todas as suas dependências.

Enfim envolveram-se em grande discussão

Chegado a este ponto da narrativa, Demóstenes fez menção de descer da tribuna. Mas os cidadãos chamaram-no com grandes gritos e pediram-lhe que acabasse a sua história.

Demóstenes fingiu ceder, e no silêncio restabelecido, gritou num tom indignado:

«Como são as coisas! Escutais-me atentamente quando vos conto a história da sombra de um burro e recusais ouvir-me quando se trata dos vossos mais legítimos interesses!»

Assegura-se que a lição pareceu boa aos atenienses e o orador pôde então tratar como devia o assunto que o levara à tribuna.

O burro de Amónius

Quando o sábio Origene e o subtil Pórfiro iam beber conhecimentos às doutas lições do grande Amónius, que ensinava belas-letras nas academias de Alexandria e de Rodes, viam entre a multidão que o ouvia o seu próprio burro.

Este burro era o exemplo de todos os auditores. Logo que o dono desmontava, em lugar de seguir para a estrebaria, entrava, subia os degraus, e sentava-se entre os assistentes. Silencioso, todo orelhas, o respeitável bicho escutava as lições de Amónius.

Dizia-se que tinha um gosto pronunciado pela poesia, a ponto de preferir não tocar nos alimentos que lhe colocavam em frente a interromper a atenção prestada à leitura de um poema ou de uma passagem filosófica.

Quando ouvia o desenrolar harmonioso das matérias viam-no dar enérgicos e inequívocos sinais de aprovação com zurros prolongados e graves, mas quando lhe recitavam maus versos sacudia as orelhas com impaciência e raspava o chão com os cascos.

Uma vez a lição terminada, levantava-se, descia os degraus do anfiteatro e vinha até à porta esperar o seu venerável dono.

Fonte: “Almanaque” – Outubro de 1959 | Imagem