O Alto Douro, visto pelos olhos de Miguel Torga

Alto Douro

Começa em Miranda [do Douro] e acaba na Foz, este calvário. Começa em pedra e água, e acaba em pedra e água. Como nos pesadelos, não há nenhum intervalo para descansar. Entra-se e sai-se do transe em plena angústia.

No Portugal telúrico e fluvial não conheço outro drama assim, feito de carne e sangue. Drama cruciante e ciclópico, que é o embate de duas forças brutas no primeiro acto, um corpo-a-corpo de vida ou de morte no segundo, e uma espécie de triunfo da fatalidade no terceiro, como pano do mar a cair.

As coisas grandes têm uma arquitectura grande e uma significação maior ainda. Assim acontece com esta moralidade grega, onde os Sísifos e os tonéis das Danaides são ao natural, que, mercê da sua configuração íntima e fisionómica, de simples acidente corográfico ascende à transcendência dum purgatório, com almas condenadas às galés dos barcos rabelos e às penas dos saibramentos.

Douro, rio e região, é certamente a realidade mais séria que temos.

Nenhum outro caudal nosso corre em leito mais duro, encontra obstáculos mais encarniçados, peleja mais arduamente em todo o caminho; nenhuma outra nesga de terra nossa possui mortórios tão vastos, tão estéreis e tão malditos.

Basta sentir no corpo, uma só vez, a dentada daquelas fragas que devolvem ao céu, agressivamente, a luz recebida, ou molhar os pés na levada barrenta que o garrote dos espinhaços tenta estrangular, para se ver que não há desgraça maior dentro da pátria, nem semelhante via-sacra de meditação.

De ponta a ponta do ano nenhuma bênção possível mitiga a crucificação do sofrimento.

No Verão, um calor de forja caldeia o xisto e transforma a corrente numa alucinação de lava a mover-se; no Inverno, até os olhos das videiras choram de frio.

Beleza não lhe falta!

Beleza não falta em qualquer tempo, porque onde haja uma vela de barco e uma escadaria de Olimpo ela existe. Mas a própria beleza deve ser entendida.

Não é subir aos restolhos de Lagoaça, contemplar o abismo, e quedar-se em êxtase. Não é espreitar de S. Salvador do Mundo o Cachão da Valeira, e sentir calafrios. Não é descer de Sabrosa para o Pinhão, estacar em S. Cristóvão, e abrir a boca de espanto. Não é ir a S. Leonardo de Galafura ou ao miradoiro de S. Brás, olhar o caleidoscópio, e ficar maravilhado.

É compreender toda a significação da tragédia, desde a tentação do cenário, à condenação de Prometeu, ao clamor do coro.

Ser nesse chão árido e hostil um novo criador de vida, dar aí uma resposta quotidiana à morte, transformar cada ravina em parapeito de esperança e cada bagada de suor em gota de doçura – eis o que o Titã ensinou aos homens, e o que Zeus lhe não perdoou.

Por isso o seu perfil rebelde é o próprio perfil dos montes, do seu coração mordido corre o sangue da perpétua agonia, e da boca das suas criaturas agradecidas se levanta um protesto indignado.

Mas o céu é surdo. E enquanto a águia do destino continua a devorar o gigante, de croças e tesouras na mão, ou arregaçados nos lagares, ou de vindimeiro às costas, os discípulos do grande revoltado vão-no vingando, seguindo-lhe a lição.

Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o País de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo.

Miguel Torga, Portugal (1950) | Imagem de Mario Zogheb